Por que nossas casas não têm conforto térmico

Outubro 2, 2019

por Julia Mendes

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Uma grande parte da energia global é consumida para operar edifícios. Além da pegada de carbono extremamente alta das construções durante toda a sua vida útil – que pode ser de décadas e séculos - o suprimento de energia de um país é uma questão estratégica de ramificações políticas e econômicas. Portanto, a melhor maneira de aliviar a crescente demanda por energia é melhorar a competência dos projetos de edifícios e introduzir regulamentações adequadas de conservação de energia nestes.

O sistema de vedação de um edifício, composto pelas paredes, cobertura, esquadrias e pisos, é um dos sistemas mais importantes que afetam a sua eficiência energética. Esses elementos separam e controlam o fluxo de energia entre os ambientes interno e externo. Assim, o sistema de vedação determina a qualidade das condições internas, independentemente do clima externo. Esse sistema também é um dos elementos menos reformados durante a operação da edificação. Ele normalmente permanece inalterado por mais anos do que a função original do edifício se manterá ou o os sistemas originais de aquecimento e refrigeração funcionarão.

Nas últimas décadas foram criadas técnicas e materiais promissores para o sistema de vedação. Numerosos materiais de isolamento estão sendo cada vez mais utilizados para garantir a qualidade das fachadas e cobertura dos edifícios. Ainda assim, uma das principais questões em relação ao projeto com eficiência energética é o aumento nos custos de construção. Embora essa preocupação seja inicialmente verdadeira, sabe-se que ao longo do ciclo de vida do edifício as economias das contas de eletricidade e gás podem superar em muito o aumento inicial do preço.

Desde a década de 1970, os países europeus promovem testes para avaliar sistemas de construção econômicos e energeticamente eficientes. Esta não é apenas uma solução para o consumo de energia e para reduzir a emissão de carbono do edifício, mas também uma resposta ao problema de residências desconfortáveis ​​e privação social que as famílias sobrem.

Nesse cenário, Olivier (2001) menciona o caso do Conselho da Cidade de Salford, Reino Unido. Em 1978, o Conselho construiu oito casas experimentais com paredes de alvenaria e piso de concreto com várias medidas de eficiência energética. Comparadas às casas comuns, elas custaram 4% a mais para serem construídas. A economia de energia medida foi de 65% ao ano. Além dessa grande economia de recursos naturais, foi relatado um aumento na temperatura interna: os inquilinos de baixa renda podiam agora aquecer suas casas até 21°C por um custo muito mais baixo. Iniciativas semelhantes em todo o mundo encontraram desempenhos e benefícios semelhantes.

Infelizmente, hoje em dia, grande parte da indústria da construção brasileira ainda está fornecendo produtos de baixa qualidade e grande consumo energético. A ânsia por grandes margens de lucro a curto prazo geralmente supera as oportunidades para a adoção de melhores materiais e técnicas de construção com maior valor agregado.

Como declara Olivier (2001), "a mudança de filosofia já está atrasada". Com base no atual estado da arte de tecnologias e padrões de eficiência energética, algumas soluções são (IEA, 2013):

  • Tecnologia de materiais: desenvolver materiais de construção mais duráveis e com maior eficiência energética; mais rapidamente e com menor custo inicial;
  • Construção civil: melhorar o treinamento e a qualificação de mão de obra, engenheiros e arquitetos; mecanizar sites; e maximizar o uso de técnicas construtivas e equipamentos racionalizados.
  • Gerenciamento: elevar o nível de qualidade da gestão de projetos por meio de qualificação e processos de gerenciamento aprimorados.
  • Regulamentação: dada a necessidade urgente de enfrentar o desafio das mudanças climáticas de maneira robusta e econômica, é essencial que as normas de desempenho sejam mais rigorosas; estabelecer órgãos legais para garantir que os edifícios concluídos atendam ao desempenho energético prescrito.
  • Governo: as instituições governamentais devem fornecer uma estratégia coerente de monitoramento, verificação, educação e treinamento.

As barreiras de mercado no setor de edifícios são complexas e podem ser difíceis de serem superadas; portanto, a implementação e a aplicação de normas de construção rigorosas serão essenciais para alcançar uma difusão generalizada dessas estratégias. O Reino Unido e os países nórdicos são exemplos de como uma liderança forte pode levar a uma grande melhoria. Na construção de sistemas de vedação na Inglaterra, o maior valor de transmitância térmica (U) permitido em 1976 era 1 W/(m²·K) para paredes expostas ao ambiente. Após diversas atualizações, o valor máximo permitido atualmente pelas normas é 0,3 W/(m²·K). O código de edificações britânico também traz valores restritivos para cobertura (0,2 W/(m²·K)), pisos (0,25 W/(m²·K)) e janelas (2 W/(m²·K)). Quanto menor o valor U, melhor o isolamento térmico do elemento construtivo.

Como comparação, no Brasil, os valores U mais rigorosos exigidos são 1,5 W/(m²·K) para telhados e 2,5 W/(m²·K) para paredes, na norma de desempenho de edificações NBR 15575. Inconsistentemente, a norma de desempenho térmico, NBR 15220, requer no máximo 2,0 e 2,2 W/(m²·K) para telhados e paredes, respectivamente. Ou seja, além de nossas normas apresentarem valores diferentes entre si, elas são muito mais permissivas que normas internacionais, acarretando casas com pior desempenho térmico.

Inicialmente, a indústria da construção nesses países desenvolvidos se opôs às propostas e alertou para aumentos 'proibitivos' nos custos de habitação (Olivier, 2001). No entanto, as medidas se tornaram lei para edifícios novos e reformados. Nos anos seguintes, dezenas de residências experimentais foram construídas para avaliar o que funcionou, o que não funcionou e as técnicas mais eficazes. Gradualmente, os materiais e medidas inicialmente resistidos pelas empresas de construção civil se tornaram habituais e uma melhoria significativa no desempenho da construção e na satisfação do usuário foi verificada.

O desempenho térmico potencialmente melhorado do envelope leva a um maior conforto térmico dos ocupantes com menor necessidade de condicionamento artificial. Por sua vez, esse efeito pode aumentar a saúde, a produtividade e o bem-estar dos moradores, reduzindo a privação social sofrida pelas famílias de baixa renda em ambientes termicamente estressantes. Dessa forma, as consequências não são apenas econômicas e ambientais, mas também sociais.

 

Referências e Artigos Relacionados

 

ABNT, 2005. NBR 15220 - Desempenho térmico de edificações. Rio de Janeiro, Associação Brasileira de Normas Técnicas.

ABNT, 2013. NBR 15575 - Desempenho de edificações habitacionais, Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Normas Técnicas.

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